quinta-feira, 11 de abril de 2013

Incomédia




ah, meu amor
o que eu te dei
o que eu te dei
dei-te de mim
o que havia
dei-te o que tinha
dei-te de mamar
quando não tinha
leite
dei-te sobre o leito
o que não dormia
dei-te mais que possuía
muito mais do que havia
procurei-te onde não ia
contei-te o que não sabia
se querias ouvir
neguei-te tudo que tinha à mão
tudo que apanhara no chão
calei-te com meu silêncio
calei-te com minha calma
calei-te em minha alma
ah, meu amor
o que eu te dei
nunca foi tudo que havia
pois havia coisas que não dizia
o que eu te dei
nunca foi tudo que possuía
pois tinha coisas que não queria
o que eu te dei
foi tudo que eu era
era tudo que eu fui
ah, meu amor
desfiz todas as paredes
desabri todas as janelas
desesqueci tudo o que tivemos
dei-te as chaves do meu mecanismo
oleei as juntas do meu organismo
com o leite que roubei às vacas
deita-me a cabeça no ombro
e deixa-me descontar-te contos
de fadas absurdas
e princesas cansadas
ah, meu amor
o que eu te dei
amei-te mil anos
e sei que amarei
outros mais
adormeci-me e esqueci de mim
por muitos e muitos anos
à espera do teu
final feliz
ah, meu amor
o que eu te dei
de quase mim
para salvar um meio-eu
de ser inteiramente ninguém
ah, meu amor
que qualquer um podia ter sido
não fossem as ampulhetas
e as tabelas horárias dos comboios...

PAR - PT
10.04.13

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