domingo, 16 de janeiro de 2011

Tempus Fugit


Ele foi lá, não queria, mas foi, pegou o táxi, pegou não, entrou. Pagou. A casa era velha, paredes com desenhos mofados, de infinitos anos e moradores desleixados, chave na porta, entrou, parou no centro da sala, havia fantasmas no sótão, estava certo, caminhou corredor acima, ou abaixo, isto pouco importa, abriu uma, depois outra, porta. Respirou os espíritos do lugar, sentiu-se penetrado, invadido, almas e pó colaram-se à mucosa nasal, sinusite macabra de mortes esquecidas. Profanava a casa com olhos densos de busca e desânimo. O eco dos anos perfurava tímpanos, retinas, um leve rumor de folhas secas arquivadas na memória, fogo a crepitar, certidões de nascimento e óbitos. O papel de parede descolara-se e, pendurado, estabilizava-se me caracóis viciados em cola.
Seu sangue corria pelas paredes da cozinha, execução de galinhas e canjas quentes de noites febris. Havia pútrido vazio cheiro, de frutas, nos azulejos e moscas renitentes alimentavam-se das lembranças de restos de amor e comida, estranhamente não viu ratos, talvez não tivessem aguentado a ausência do arrastar de cadeiras e gritos.
Pelos vidros de pacientes teias de aranhas divisava, vez por outra, roseiras secas, flor nenhuma espinhos muitos, onde muitas vezes deixara pedaços de renda, pedaços de pele, brincadeiras de infância. Viu-se vestido de marinheiro, a navegar pela casa, perseguido por um irmão ou um chinelo, num impulso correu de novo pela casa, máquina do tempo, tempo parado, parou à porta do antigo quarto, ameaçou, não abriu, meia volta, a lágrima devorou em linha recta o pó da face.
Chave na porta, saiu, parou na calçada, entrou no táxi, não olhou para trás. A casa ficou, colada ao retrovisor, ele foi lá, não queria mas foi. Dedos nas teclas, sons electrónicos, sim, sim, Sr. Fulano… Gostava de saber se sua proposta ainda está de pé… Sim, pois é, eu decidi vender… a casa…
Ali estava ele, estranho de si mesmo, fizera uma retirada da memória e, agora, depositava no banco. Foi lá, não queria, mas foi.

PAR - PT

1 comentário:

Marcos Burian (Buriol) disse...

...

Como comentar algo que é tão verdadeiro, tão intensamente verdadeiro, tão vivenciado, tão real?

Santa Poesia