domingo, 17 de outubro de 2010

Noiado

…” O que-se passa na melancolia esclarece, pelo contraste, a situação paranoica. Ali, com effeito, o phenomeno inicial é d'ordem emotiva, pois que se reduz a uma depressão consciente, que estados de cenesthesia morbida provocam: a tonalidade psychica baixa, o doente sente-se diverso do que fóra, a dôr moral invade-o, e é ao fim d'algum tempo d'esta situação anormal que o delirio surge, quer como tentativa de interpretação do novo modo de ser, quer como adequada expressão ideativa de um sentimento geral de impotencia. As idéas de crime, de peccado, de doença incuravel, de miseria, de incapacidade, de possessão, n'uma palavra, todas as idéas que formam o contheudo do delirio melancolico, são ulteriores á depressão dolorosa, que é o facto morbido primitivo. Essas idéas não procedem do inconsciente, não irrompem de obscuras emoções por ignorados e mysteriosos processos, mas succedem a um consciente sentimento de dôr, que tem as suas raizes em phenomenos somaticos apreciaveis. O melancolico sente-se mudado, o que é exacto, e torna-se porisso autoobservador, primeiro, e delirante depois; o perseguido, esse, sente mudado em relação a si o mundo exterior, o que é falso, o que presuppõe uma ideação anormal e, portanto, um começo de delirio, que a observação objectiva apenas ajudará a systematisar. Emquanto o melancolico, abatido e humilhado por um sentimento real de dôr, que é a expressão consciente de perturbações cenesthesicas, se concentra e se interroga, fazendo um delirio secundario, o perseguido, egocentrico e autophilico, partindo de uma idéa chimerica de hostilidade, abre os sentidos e observa o mundo externo, delirando primitivamente.”…




Trecho delirante do livro: A Paranóia de Júlio de Mattos



A PARANOIA

Julio de Mattos

ENSAIO PATHOGENICO SOBRE OS DELIRIOS SYSTEMATISADOS



…Ci iroviamo proprio faccia a faccia col nudo querito della pura pazzia.

EUGENIO TANZI



Lisboa

Livraria Editora

Tavares Cardoso & Irmão

5, Largo de Camões, 6

1898



Supostamente o que de mais moderno em psicologia se poderia encontrar.



Transcrito aqui como homenagem ao amigo blogger

– Noiado no Sótão.



P.S.: Júlio de Matos foi um notável psiquiatra e um dos mais importantes reformadores do ensino da Psiquiatria em Portugal, Júlio de Matos distinguiu-se no âmbito do alienismo e da psiquiatria forense. Entusiasta das correntes positivistas comteanas, fundou, conjuntamente com Miguel Artur e Ricardo Jorge, a revista O Positivismo e foi um dos seus directores. Foi ainda Membro do Conselho Médico-Legal e da Societé Medico-Psychologique de Paris e sócio da Academia das Ciências de Lisboa.

2 comentários:

Jack vestida de loba e uivando...ou balindo? disse...

Guri dos Olhos Doces, amigo em comum, revolvendo os mares e aterrorizando monstros!

Marcos Burian (Buriol) disse...

Vênias, muitas vênias. Ainda que atrasadas...em finais de semana me afasto um pouco da blogosfera e somente hoje vi tal texto.

Obrigado, muito obrigado. Achei muito interessante o texto também, tanto em sua forma quanto em sua essência.

Por vezes me pergunto se o que sinto é de fato patológico...ou se devo acreditar nas exteriores opiniões que "só estou assim porque quero", frase que costuma me inflamar a alma quando vinda de pessoas que supostamente são meus amigos...

Mais uma vez, gracias caro companheiro.

Santa Poesia